Page 56 - Revista da Ordem - Edição 40
P. 56

56 Cadernos Jurídicos

Insuficiência da Auto Regulação.                               rais ao seu limite e colocará a nossa civilização em risco.

    Por outro lado, esperar que a própria sociedade se au-         Assim, chegou a hora de escolher como usaremos es-
torregule pode ser perigoso, pois nem sempre os agentes        ses recursos. E essa escolha refletirá a forma como obser-
sociais envolvidos tomarão condutas alinhadas ao bem           vamos o mundo, isto é, a nossa ética, valores e paixões,
maior da comunidade. Assim, se a classe em questão tiver       sendo esses os elementos que nos movem. Por séculos
como meta a maximização dos interesses de sua própria          cultivamos uma cultura em que crescimento e acumula-
categoria, a autorregulação sem o devido controle da so-       ção eram sinônimo de desenvolvimento. Gerações e ge-
ciedade pode ser equivalente a entregar as “ovelhas” aos       rações viveram essa busca por acumular conhecimento,
“lobos”. Nesse caso, a retração do direto frente à liberdade   produtos, influência e poder. Por outro lado, pecamos
individual pode gerar o colapso do setor em questão, além      quanto ao olhar sistêmico, o respeito aos outros seres
de graves problemas com os quais toda a sociedade terá que     da mesma e de outras espécies. É hora de corrigir essas
lidar posteriormente, como aconteceu com crise dos sub-        distorções, de imprimir humanidade e ética genuínas à
prime, que afetou a economia norte americana.                  sociedade e de aprender a usar o conhecimento a favor
                                                               de todos. A ironia é que quanto mais as tecnologias se
    Se tanto o Estado como os setores específicos da socie-    desenvolvem, cresce na mesma proporção a necessidade
dade parecem não dar conta de regular o direito isolada-       de revisitar nossa conexão com o universo, com a comu-
mente, o que fazer então? Proibir que os programadores e       nidade e conosco mesmo.
especialistas em tecnologia sigam inovando?
                                                                   O resultado dessa história ainda não está definido. No
    Sem entrar no mérito da sua constitucionalidade, trata-    entanto, é necessário, antes de tudo, nos conscientizar de
se de proposta irrealizável. Como controlar a conduta pri-     que essas são questões a serem tratadas em âmbito indivi-
vada de mais de 7 bilhões de pessoas? Qual seria a institui-   dual e social. No plano individual é importante que esteja-
ção com competência e legitimidade para isso? Faz sentido      mos dispostos a refletir profundamente sobre os valores a
tornar a tecnologia um ilícito pelo simples fato de não se     partir dos quais atuamos no mundo, a fim de reformar os
poder prever o seu efeito em longo prazo?                      padrões geracionais inadequados. Somente a partir desse
                                                               novo olhar será possível nos despir dos preconceitos e con-
    A Tecnologia e o Nosso Papel.                              ceitos classistas e “especicistas”1 para lidar com as diferen-
                                                               ças e com as semelhanças em relação ao outro.

    A verdade é que a tecnologia em si não é o problema ou         No social é essencial que tenhamos humildade para
solução para os males sociais e ambientais. Esta não é a vilã  perceber que, sozinhos, não conseguiremos regular essas
e, muito menos, a heroína desse enredo. Ela simplesmente       questões, sendo urgente que estejamos abertos a dialogar
potencializa e acelera o impacto social e ambiental do ho-     e a construir conhecimento e soluções com todos os segui-
mem contemporâneo no ecossistema, podendo esse impac-          mentos sociais. Para lidar com a questão da inovação é pre-
to ser positivo ou negativo. A conectividade e o aumento do    ciso muito mais que uma lei, política estatal ou um código
fluxo de informações entre os povos tanto tem o potencial      de autorregulação, passando essa solução pela construção
de gerar colaboração e a empatia, como o reverso podendo       de uma uma nova cultura e de uma democracia mais com-
aflorar as diferenças, disputas e guerras pelo poder.          plexa, integrada e participativa, em que imperem valores
                                                               mais nobres, contemplando o interesse de todos os seres
    Se usadas com responsabilidade – considerando que          vivos. É preciso que os cidadãos saiam da usual posição de
somos um sistema integrado e altamente complexo – as           vítimas e assumam o papel de protagonistas.
novas tecnologias podem contribuir para a resolução de
inúmeros problemas e colaborar para a criação de uma so-           Essa democracia envolveria a disseminação de um di-
ciedade mais justa e equilibrada. Por outro lado, o uso des-   reito mais participativo, nos moldes lecionados pelo ilustre
sas mesmas tecnologias para a maximização do lucro de-         historiador e jurista português António Manuel Espanha2.
senfreado de uma classe, sem considerar os efeitos dessas      Porém, como dito acima, esse não é um texto de respostas,
escolhas frente à comunidade e ao planeta, levará (segundo     mas sim de perguntas. Fica aqui o convite para que cada
pesquisas), num curto espaço de tempo, os recursos natu-       um reflita que papel deseja ter no desenrolar desse enredo.

1 Por “especicismo” refere-se à filosofia que considera que os somente os serem humanos são dignos de direitos em detrimento de todas as outras especies de
seres vivos do planeta.
2 HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático. São Paulo: Annablume, 2013.
   51   52   53   54   55   56   57   58   59   60   61