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pitoresco
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2017 | jan/fev | REVISTA dA ORDEM Razões
finais
por Ana Cristiane
de Mello Moreles
“Mãe, me dê dez razões nhá-la, tudo com a supervisão de um liminar e que o Estado estava obri-
para eu escolher o professor advogado. gado a lhe fornecer o medicamento
Direito”. gratuitamente enquanto perdurasse o
Foi assim, sem meias palavras, Já fazia alguns dias que havíamos problema ou dele precisasse.
que ouvi minha filha Ana Carolina me impetrado um Mandado de Segurança
questionando sobre a profissão da Ad- para um senhor, vítima de um A.V.C, Naquele momento o homem
vocacia. Ela é ainda jovem, entrou no que precisava de um medicamento olhou-me com um olhar marejado e
curso de jornalismo e não se adaptou; controlado e de uso contínuo, para indescritível de felicidade. “Nós ga-
pensou em fazer psicologia ou talvez ele muito caro, e que a Secretaria de nhamos, doutora?” Eu apenas acenei
Direito, daí o motivo de seu interesse. Saúde não fornecia. Estávamos com a que sim com a cabeça e minha colega
Eu confesso que já havia tentado “pu- liminar em mãos e não conseguíamos de estágio lhe explicou o que ele de-
xar essa brasa para minha sardinha”, contato com aquele senhor. Pedimos veria fazer a partir de então. Aquele
sugerindo-lhe fazer o curso, mas à autorização para ir em seu endereço a foi o momento.
época ela escolheu jornalismo e eu a fim de lhe avisar que o juiz lhe con-
apoiei, logicamente. cedeu a liminar, que o Estado já havia Entendi ali o papel que o advo-
sido citado para cumprimento e que gado desempenha e animei-me na
Pedi-lhe um tempo para respon- ele deveria ir à Regional de Saúde, responsabilidade que eu carregaria
der. Pensei em fazer uma tabela, com urgência. Autorizado. a partir de então: a de ser um ins-
elencando de um lado as coisas boas trumento para a concretização da
das carreiras jurídicas e de se cursar Entrei no carro feliz da vida justiça, de trazer à luz situações em
Direito e do outro as dificuldades. E com aquele “feito”: uma liminar em que um direito está perecendo e, com
nesse processo de como responder à Mandado de Segurança, nossa! Isso isso, mudar a vida de alguém.
minha filha, passei a pensar na mi- era muito bom para mim. O carro
nha própria escolha. se afastava da zona urbana e fomos Até aquele momento, a conces-
rumando à Vila do Jordão. Eu via as são de liminar significava para mim
Como eu vim parar na advocacia casas simples de madeira e de cores uma vitória, mas a partir de então eu
e estou nela há mais de dez anos? desbotadas, construídas sobre o chão pude enxergar o que ela realmente
Lembrei como foram os inesquecí- batido. Em cada casa, uma chaminé significava: era dignidade, era não
veis primeiros anos de formada, as do fogão à lenha que soltava o vapor precisar pedir esmolas, era não ter
dificuldades de montar um escritório, da madeira queimada no ar. vergonha, era voltar a andar, era a
os conselhos recebidos e guardados verdadeira Justiça.
daqueles profissionais que sabiam, Chegamos no endereço e logo vi
e ainda sabem, mais do que eu. Os “meu cliente” sentado ao sol, numa Quando eu vi aquele velho ho-
primeiros atendimentos na minha pequena calçadinha que fazia as ve- mem chorando ao sol porque volta-
própria “sala de advogada” (rsrs), as zes de varanda para a modesta casa. ria a tomar o medicamento de que
primeiras conquistas, os primeiros Ao me ver, sem levantar do lugar, ele tanto precisava é que entendi que
honorários... Tantas lembranças em foi logo nos convidando a entrar. Ali não importa o quanto significava
uma carreira ainda curta. constatei que a falta do remédio fez para mim aquela liminar, PARA ELE
com que as sequelas do AVC se agra- SIGNIFICAVA MUITO MAIS!
Viajando mais longe no tempo, vassem e ele não conseguisse mais
cheguei ao dia em que eu tive a con- caminhar. E também ali lhe comuni- Então, minha filha, não vou escre-
vicção de que essa profissão ia muito quei que o juiz havia concedido uma ver aqui as dez razões para você esco-
além de simplesmente “entrar com lher o Direito. Conto aqui uma única
processos” ou ganhar ações. razão que vale por dez.
Era uma manhã tipicamente gua-
rapuavana, em que o sol, tímido, es-
piava por dentre as nuvens de vez em
quando, depois de uma noite de mui-
ta chuva. Eu estava no último ano de
faculdade e fazia estágio obrigatório.
Os estágios eram feitos em dupla na-
quela época, e consistiam em atender
pessoas de baixa renda, confeccionar
a ação correspondente e acompa-